terça-feira, 28 de novembro de 2017

Acredito que as perdas nos tomam de assalto, principalmente, no campo dos afetos.

Há alguma luta eterna, como na metáfora de Kafka - o Ele é pressionado por duas forças antagônicas: o passado e o futuro.


Esta agonia do “passado que não morre e do futuro que nunca chega”(Morin)
Também diz muito de nosso campo ferido pelas perdas

Lembro que, quando pequena, me perdi dos meus pais. Segundo me contam quando me acharam eu disse:”eu segui o avião no céu”.

Um avião se tornou por alguns instantes uma presença mais importante que meus pais numa praia. O que mudou de lá pra cá?

A idade nos faz, no campo dos afetos, valorizar as pessoas que nos mostram segurança, amizade, cuidado, etc

No tempo da miséria dos afetos, tempos “onfaloscópicos”(Maffesoli) o eu requer uma presença infinita do desejo - e qualquer sinal novo no céu pode gerar uma distração e nos fazer amargar perdas irreparáveis

Ditadura dos desejos - Força do futuro guerreando
Ditadura da segurança - força do passado

Na “lacuna” está o Ele.

Que nem é presente, é apenas Ele.

Não foi Kafka quem disse isso, mas Hannah Arendt, esta lacuna só será verdadeiramente um Presente se o Ele se impuser contra as forças do passado e futuro e lutar por sua liberdade

Mas, no campo dos afetos, o que é ser livre?

O medo de perder e de não ter vivido por manter - é sintoma

Signo

Na constelação dos nossos precipícios …


Passaram álcool na existência...


A necessidade de correr risco - que poucos tem. É a alma da arte.
Ela desafia fronteiras - transgride.
Desespera - no sentido de André Comte-Sponville.

Medo nós temos, e muitos.
Já o desejo do risco nem tanto.

Fui a um festival tradicional de rock, o "Ponto.Ce"
Olhem que letra bela da Banda Canto Cego:

"Passaram álcool nas palavras
As bocas secas não conseguem argumentar
Quero coagir os covardes atrasos
Vamos reagir à hostilidades com afetos fartos."

Passaram álcool nas palavras!
Passaram álcool na existência!
A sociedade do desejo pelo status(Alain de Botton) - é a sociedade da morte do desejo autêntico.
Alain de Botton tenta até esquematizar como funciona este meme:
Covardia: o medo da desonra. O unlike que atravessa redes sociais e desmorona a beleza dos riscos e delírios.

Minha nossa: como não dizer que o risco amplia nossa esfera de existência?!

Por este motivo viver é uma arte.

Ele deveria mesmo, tentar sê-la. 

Como uma sociedade, ao mesmo tempo viciada em si, solipsista, "onfaloscopica"(Maffesoli) é também tão castrada na sede de seus desejos? 

Ela tem desejos, mas são: copiados - colados.

Isso!

Desejo de control C + control V.

Geração Colagem.

Li agora mesmo, por meio de Teixeira Coelho, que nós somos a única geração "que gosta de si mesma" - ele afirma:
"A Renascença gostava da antiguidade greco-romana; o Barroco seguiu em boa parte a mesma trilha (e os barrocos que optaram pelo presente de sua época se deram mal em vida, a única coisa que de resto conta); o Neoclássico já deixava claro em seu rótulo qual era sua refe- rência cultural, também enxergando o mundo pelo espelho retrovisor; no século 19, os que olharam para o que havia ao lado deles, naquele mesmo instante, tampouco se saíram bem num primeiro momento, assim como pelo menos a primeira metade do século 20 teve grande di culdade inicial de olhar-se a si mesma de frente:14 este século 21 é francamente um adepto e seguidor viral de si mesmo,[...]".(2015, p. 23)

A gente não arrisca mais.
Foi-se de nós o saudosismo
E com ele, aquele olhar para além-instante

Isto, sozinho, não é ruim
Mas se pressionado a se tornar um aparato "pontilhista" - (de infinitos desejos - num etecetera sem fim(Bauman)  - é preocupante....
Se alguém quiser cantar - com coração na boca - a música que citei - deixo aqui o link com essa magia inteira desenhada na capa do CD: https://www.letras.mus.br/canto-cego/contra-canto/




domingo, 26 de novembro de 2017

Os labirintos do habitus e a Restauração da Catedral The Chartes .

Os labirintos do habitus e a Restauração da Catedral The Chartes



O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29)
Os nossos sentidos criam o mundo, mas não tudoO mundo simbólico humano se exterioriza pelas palavras, ritos, signos e outros que produzimos semanticamente como elementos constitutivos de nossa existência. Tudo que produzimos é cultura? Tudo que fazemos? É da essência da cultura o habitus? Para Pierre Bourdieu não - a cultura é tudo aquilo que resta quando se extirpa dela o habitus (COELHO, 2009, p. 32). É importante notar que a reprodução do habitus pode ser feita até pelos animais irracionais - sim!  A transmissão cultural, segundo Richard Dawkins, não é característica apenas da espécie humana: "O melhor exemplo que conheço entre os animais foi recentemente descrito por P. F. Jenkins no canto de uma ave ("saddleback") que vive em ilhas próximas da Nova Zelândia. Na ilha na qual ele trabalhou havia um repertório total de cerca de nove cantos diferentes."(DAWKINS, 2007, p. 122). Entretanto, a cultura humana é mais que habitus, ou, parafraseando Pierre Bourdieu, é tudo menos o habitus. Neste sentido, o grande impasse aqui exposto é: o que há de ser restaurado faz parte da arte ou da cultura? Caso seja objeto cultural estaremos diante de uma restauração de difícil execução: "O programa para a obra de cultura, nessa perspectiva, arma-se sobre uma racionalidade convencional (convenciona-se que os reis magos eram de tal modo e convenciona-se que de um determinado modo, deste modo específico, são representados; e a convenção não deve mudar nunca, sob pena de eliminar-se o sentido do evento).". (COELHO, 2009, p. 132). Portanto, mudar a estética de uma Catedral é, necessariamente, se inserir dentro deste espaço místico que a constituiu. O que fazer quando a ciência achou a "cor verdadeira" da Catedral? O jornalista Joan Gould, em 1988, relatou sua experiência ao visitar a Catedral The Chartes e, quando lá, topou com um passado anterior à própria história do cristianismo: "Por acidente, eu tinha tropeçado em uma antiga tradição mística que afirma que Chartres - não a catedral, mas o ponto geográfico, especificamente esta colina com suas grutas subterrâneas - foi um terreno sagrado muito antes do primeiro cristão chegar aqui."(GOULD, online, 1988. Tradução livre da autora). Devemos então regressar ao sentido original de Chartes - antes de ter a Catedral The Chartes - e descortinarmos toda a "verdade histórica original"? O habitus constitui a história, mas não a cultura. O habitus é um labirinto. Conservá-lo; entretanto, é, muitas vezes, evitar as "geladeiras objetivantes de estrelas mortas"(COELHO, 2008, p. 97). Em "A inelutável cisão do ver" DIDI-HUBERMAN enuncia as propriedades duais do olhar: que se constitui primeiro como tentativa de "ter", mas que, necessariamente, perde-se, como um ato de "ser": "Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda evidência (a evidência visível) não obstante como uma obra (uma obra visual) de perda."(1998, p. 34). Segundo o mesmo autor, já na Idade Média se pontuava a diferença entre imagem (imago) e vestígio (vestigium): "Eles tentavam assim explicar que o que é visível diante de nós, em torno de nós - a natureza, os corpos - só deveria ser visto como portando traços característicos de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança a Deus perdida no pecado"”(1998, p. 35). A experiência visual, mesmo religiosa, é rudimentar - não absolutizante. A Catedral e todo aparato simbólico que lá residem compõem um caleidoscópio labiríntico não eternizado.  A Carta de Veneza aponta para a importância da manutenção do aparato monumental do testemunho histórico e o meio em que está situado: "Art.3. A conservação e o restauro dos monumentos visam salvaguardar tanto a obra de arte como o testemunho histórico."Art.7. O monumento é inseparável da história - do qual é testemunho - e também do meio em que está situado. Por conseguinte, a deslocação do todo ou de uma parte de um monumento não pode ser tolerada, a não ser no caso em que a salvaguarda do monumento exija, ou quando as razões de um grande interesse nacional ou internacional justifiquem. art.9 O restauro é uma operação que deve ter um caráter excepcional. Destina-se a conservar e a revelar os valores estéticos e históricos dos monumentos e baseia-se no respeito pelas substâncias antigas e pelos documentos autênticos (ou seja, pela antiguidade e pela autenticidade).[....]". (Grifo nosso). A restauração vem; portanto, apresentar algumas saídas: 1. Habitus é o labirinto da cultura: ou seja, precisa ser desfeito, mas com cuidado - até o momento que não a desfigure; 2. Como todo labirinto-humano: não há sempre uma única saída. Por este motivo, a decisão de continuar a restauração, ou a de parar com a mesma, sempre movimentará posições antagônicas; 3. Não há experiência visual que detenha toda a infinitude da obra observada, mesmo a religiosa; 4. A verdade é a vida:  "É difícil dizer a verdade pois, embora exista apenas uma verdade, ela está viva e tem, portanto, uma face viva e mutável." (Franz Kafka). Por este motivo, a Restauração deve vir acompanhada de amplo diálogo para não se perder dentro dos labirintos do habitus, nem da ciência.


Queermuseu e a Interversão de Dionísio.


"O Queermuseu e a Interversão de Dioníso."

O dever da arte é ser Apolo. Assim seria a exigência de uma arte que apenas refletisse o curso e ordem da razão dominante. Mas o apelo dionisíaco, outro verso da beleza, inverte a ordem das coisas e propõe sua subversão pelo desejo. Enquanto alguns veem no seu próprio umbigo sensorial o filtro "moral-semiótico" do que "deve ser" a arte - Dioniso confunde, embriaga e...Big Bang! Chega à existência o "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", reunindo mais de 270 trabalhos de 85 artistas renomados, com a curadoria de Gaudêncio Fidelis. Uma explosão que tem menos sobre o que há no museu e mais sobre o que experimentamos no Brasil. O termo “Interversão”, utilizado no título deste parecer, é inspirado numa intervenção artística ocorrida na década de oitenta no Rio de Janeiro: o “Movimento de Arte Pornô”, comemorando os 60 anos da Semana de Arte Moderna. Seu lema era: “Arte é penetração e gozo” (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p. 29). Este, suscita, necessariamente, debates intensos, e a maior inquietação ocasionada pelos burburinhos em torno da exposição Queer está relacionada ao mesmo passo - ela, também, vem lançar luzes sobre a possibilidade de uma: “alteração da ordem natural ou habitual”(AGUILAR; CÁMARA, 2017, p.  29). O conceito de beleza tem memória grega: Apolo e Dionísio eram suas representações no Templo de Delfos. Enquanto aquela comunga bem com as exigências de pôr ordem e controlar o caos da existência, a dionisíaca brinca com as fronteiras - as nega, traz crises, põe Big Bang no mundo: “Essa coabitação de duas divindades antitéticas não é casual, embora só tenha sido tematizada na idade moderna, com Nietzsche. Em geral, ela exprime a possibilidade, sempre presente e verificando-se periodicamente, da irrupção do caos na beleza da harmonia.”.(ECO, 2014, p. 53, 54). Caos: isto resume um pouco todo o frisson ocasionado pela exposição, conseguindo provocar críticos de todos os lados: tanto de dentro, como de fora do círculo da arte. Vamos então começar pelas críticas endógenas. Segundo estas o nome Queer não seria o mais adequado à plataforma temática – haveria uma tentativa de purificação moral do termo, o qual deveria ter sido denominado de “arte viada” ou "arte maricas", como foi efetuado em Portugal: "O termo “queer” presente no título da mostra refere-se exatamente a essa injúria e, por esse motivo, os portugueses traduziram adequadamente o termo “teoria queer” como “teoria maricas” (bem lembrado por meu amigo Ernani Chaves). No Brasil dos doutos apaziguadores das polêmicas, permanece “teoria queer”, mas eu prefiro “teoria viada” e seu sucedâneo “arte viada” que, como sabemos, não é produzida só por viados e viadas. E não é de hoje que se produz “arte viada”.(MEDEIROS, online, 2017). Já as críticas exógenas, tem sido produzidas em grande medida pelo já conhecido MBL - Movimento Brasil Livre. Este, diferente do "Movimento de Arte Pornô", não aprecia a arte - e a tem como um perigo, desconstrutora da moralidade. Neste sentido, este "movimento" determina, precariamente, qual arte seria útil dentro do seu conceito de beleza, religião, sexualidade, etc. Ações típicas de sentimentos “onfaloscópicos” (MAFFESOLI, 2009, p. 18). O MBL é caracterizado, essencialmente, por suas posições reducionistas, típicas do sério problema dos grupos que se utilizam de identidades absolutas e as querem impor, inflamando o mundo, em "miniturizações" identitárias (SEN, 201, p. 185). A ideia de atribuir uma utilidade para arte, seja qual for a ideologia que a anime, é estranha à sua própria essência. August Wilhelm Schlegel, em sua obra “Doutrina da Arte”, labora uma teoria sobre história, crítica e teoria da arte. Neste clássico ele assevera: “Uma casa serve para nela se morar. Mas para que serve, nesse sentido, um quadro ou um poema? Para nada. Muitas pessoas tiveram boas intenções com as artes, mas as compreenderam muito mal quando procuraram recomendá-las pelo aspecto de sua utilidade. Isso significa rebaixá-las ao extremo e inverter a questão. Na essência das belas-artes reside o fato de não quererem ser úteis. O belo é, em certa medida, o oposto do útil: ele é algo junto a que se abandonou o ser útil. Tudo que é útil é subordinado àquilo para o que é útil.” (SCHLEGEL, 2014, p. 26). Num diálogo entre Walter Benjamin e um amigo seu (que ele não cita o nome) sobre a “finalidade da arte” e a máxima "L’art pour l’art" - seu amigo assevera: “ [L'art pour L'art] Significa simplesmente: a arte não é funcionária do Estado, não é empregada da Igreja, nem mesmo é a favor da criança, etc. L’art por l’art significa: não se sabe que destino dar à arte.”.(BENJAMIN, 2013,  p. 32).  Portanto, estamos diante de um flagrante Estado de exceção para o direito fundamental à liberdade de expressão (Art. 5o. IV, IX, 22 parágrafo 2o, CR/88), instaurando um tipo de "Ditadura dos bons sentimentos" (MAFFESOLI, 2009, p. 123), pois, mesmo com as melhores intenções: tudo isto não passará de uma imposição desenfreada de sentido. Não poucas vezes experimentamos direitos se tornarem álibis nas mãos de péssimos intérpretes. Há um fenômeno estudado como "Solipsismo" (STRECK, 2017, p. 273) que alerta como alguém, viciado em si (em seu umbigo) decide não conforme o direito em questão, mas conforme sua visão de mundo - impondo-a de maneira, muitas vezes, irracional. Este fenômeno ocorre não apenas quando um juiz concretiza uma decisão absurda, mas quando, como ocorreu no Estado do Espírito Santo, em caráter de urgência, se propõe uma Lei censurando toda forma de nú artístico - uma lei claramente solipsista. Neste sentido, cancelar a mostra foi; portanto, uma arbitrariedade. E, se querem declarar uma guerra contra a arte, só uma luta animada pela liberdade, desejo e poesia - num mosaico experimental (COELHO, 2008, p. 120) nos salvará, então: Tesudos de todo mundo, uni-vos! ”(FREIRE, 1990).