quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Por que o inferno não é aqui?

Por que o inferno não é aqui?


Mudam-se as eras e a mesma certeza se reverbera: o inferno só pode ser... aqui?
O título deste livro é um trocadilho. O bem intencionado mundo teórico, retratado na "República dos bons sentimentos", é resultado de um tipo de ressentimento saudosista por um ideal que só post mortem, ou noutro tempo histórico, seria possível.
Para evitar esta assepsia escapista e toda “ventriloquia intelectual.” (p. 55), Michel Maffesoli propõe uma ciência insubmissa, enraizada na experiência orgânica e coletiva, tomando a força dionisíaca: resgatando o amor à vida, apesar de tudo.
Para esta conquista o autor contrapõe dois significados centrais de “inteligência”: a intelligere (p. 42) – de tipo orgânico, se relaciona com a vida e interage de forma aprendiz até com o conhecimento ou senso comum, e a intelligentsia (p. 9), típica do pensamento acadêmico, refém dos totalitarismos das abstrações oficiais, colonizada sempre pelo medo de pensar livre. Para que aquela intelligere seja possível, é necessária uma redefinição de amor à vida terrena. Neste sentido, demonstra como ciência e religião tem um discurso, bem intencionado, de repúdio ao mundo real (como se este fosse o inferno) – e, claro, cada uma propõe o dogma que deve ser obedecido para o alcance da vida ideal. A ciência, fazendo uma troca simbólica com a religião, promete a salvação – o céu, contra um mundo-inimigo, pelo dogma da academia: condicionando tudo que é vivo ao seu nominalismo.
Como a vida não nasce nem morre no dogma, o resultado disto é o ressentimento, quimeras que querem deitar a imprevisibilidade da vida ao seu leito de Procusto. Por este motivo, Michel Maffesoli incita diversas provocações para urgência de um tipo de produção de conhecimento que seja, necessariamente, livre – subversiva. Entretanto, por medo de “cair no inferno” pelo agir despedaçante de dogmas, temos sofrido do que o autor denomina de “Onfaloscopia” (p. 18) – um certo tipo de preguiça, covardia e reprodução infinita de um mesmo “eu copiado”- todos seguem, cegamente, a mesma cartilha purista. Ele simboliza este fenômeno com a metáfora das “pérolas de vidro” – belas, mas mortas. Um infinito prolongamento de mesmo pensar:

"Todo esse mundinho se entope de valores, gurus e teorias que ele construiu a sua própria imagem. Em coro e em grupo, ficam enfiando pérolas de vidro numa linha para com elas fazer um colar. Em coro e em grupo, ficam enfiando-se uns nos outros.".  (MAFFESOLI, 2009,  p. 76)

Como conceito, con-cepire, pretende abarcar a vida – e esta não cabe num mesmo cordão, há um perigo sempre recorrente de a “República dos Bons Sentimentos” se transformar na “Ditadura dos Bons Sentimentos” – levando ao último nível o seu “terrorismo intelectual”: “E nesse momento seus protagonistas irão sem dúvida sacrificar algum bode expiatório para celebrar e confortar o Universalismo, a Verdade, a Moral, a Ciência ou outro Deus único do mesmo calibre. [...].”.(p. 41). Totalitarismos, inquisições, ditaduras – tudo é resquício de uma apropriação absolutizante da vida por um ideal determinado.
Os escritos acadêmicos tem a mania, que chamamos "ciência", de multiplicar pensamentos referendados pelo autismo do discurso oficial - reverberado mil vezes. Um entolho de frases certas - que apontam os erros de um mundo obscenamente incurável - e a cura teórica dos burgueses (em maioria) que teimam com a vida e preferem as cortinas bem limpas das academias e mesas de debates.
O que nos socorre é a salvação dos “outsiders”, dos que pensaram contra a sociedade. O vírus que não morre é a nossa cura. Contra o delírio de um mundo ideal que seja construído sem relacionamento íntimo e orgânico com a vida real – escapando das promessas e dogmas metafísicos do saudosismo melancólico que parece percorrer os filósofos desde a Antiguidade clássica: “Já Platão afirmava que os “bons velhos tempos”, os tempos dourados, haviam ficado perdidos para trás, numa outra fórmula para observar e lamentar que os tempos “do momento” não tinham forma boa ou, a rigor, forma alguma. (COELHO, p. 14). Neste pessimismo de esperar outro momento, que não o agora, outro mundo, que não o possível e real, constrói uma idealização extrema que recria-nos para orbitarmos em torno desta incessante vontade de espelhar um tipo de beleza est-ética (LIPOVETSKY, 2015) - que nos roubou de nós. Um certo pavor de escrever, falar ou pensar algo que escape do filete coerente e digno que nos enfeite de elogios, nos tem tornado menos “vírides”, mais domesticados e menos reais.
Amar a vida. O presente – o instante. Pensar a partir do que está vivo. Esta lucidez só é possível se não amarrada num “cordão de pérolas de vidro”(p.76). Se é da provocação que surge a pérola real – os expurgados, os hereges, possuem a única salvação possível.
Afinal, o reino dos céus é a terra, e nada mais que isso.




O texto acima foi inspirado na obra: 

MAFFESOLI, Michel. A república dos bons sentimentos. Tradução:  Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras-Itaú Cultural, 2009. Título original: La république des bons sentiments. 96p.


                           

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