Por que o inferno não é aqui?
Mudam-se
as eras e a mesma certeza se reverbera: o inferno só pode ser... aqui?
O título deste livro é um
trocadilho. O bem intencionado mundo teórico, retratado na "República dos
bons sentimentos", é resultado de um tipo de ressentimento saudosista por
um ideal que só post mortem, ou noutro tempo histórico, seria possível.
Para
evitar esta assepsia escapista e toda “ventriloquia intelectual.” (p. 55),
Michel Maffesoli propõe uma ciência insubmissa, enraizada na experiência
orgânica e coletiva, tomando a força dionisíaca: resgatando o amor à vida,
apesar de tudo.
Para
esta conquista o autor contrapõe dois significados centrais de “inteligência”:
a intelligere (p. 42) – de tipo
orgânico, se relaciona com a vida e interage de forma aprendiz até com o
conhecimento ou senso comum, e a intelligentsia
(p. 9), típica do pensamento acadêmico, refém dos totalitarismos das abstrações
oficiais, colonizada sempre pelo medo de pensar livre. Para que aquela intelligere seja possível, é necessária
uma redefinição de amor à vida terrena. Neste sentido, demonstra como ciência e
religião tem um discurso, bem intencionado, de repúdio ao mundo real (como se este
fosse o inferno) – e, claro, cada uma propõe o dogma que deve ser obedecido
para o alcance da vida ideal. A ciência, fazendo uma troca simbólica com a
religião, promete a salvação – o céu, contra um mundo-inimigo, pelo dogma da
academia: condicionando tudo que é vivo ao seu nominalismo.
Como
a vida não nasce nem morre no dogma, o resultado disto é o ressentimento,
quimeras que querem deitar a imprevisibilidade da vida ao seu leito de Procusto.
Por este motivo, Michel Maffesoli incita diversas provocações para urgência de
um tipo de produção de conhecimento que seja, necessariamente, livre –
subversiva. Entretanto, por medo de “cair no inferno” pelo agir despedaçante de
dogmas, temos sofrido do que o autor denomina de “Onfaloscopia” (p. 18) – um
certo tipo de preguiça, covardia e reprodução infinita de um mesmo “eu
copiado”- todos seguem, cegamente, a mesma cartilha purista. Ele simboliza este
fenômeno com a metáfora das “pérolas de vidro” – belas, mas mortas. Um infinito
prolongamento de mesmo pensar:
"Todo esse mundinho se
entope de valores, gurus e teorias que ele construiu a sua própria imagem. Em
coro e em grupo, ficam enfiando pérolas de vidro numa linha para com elas
fazer um colar. Em coro e em grupo, ficam enfiando-se uns nos outros.". (MAFFESOLI, 2009, p. 76)
Como
conceito, con-cepire, pretende
abarcar a vida – e esta não cabe num mesmo cordão, há um perigo sempre
recorrente de a “República dos Bons Sentimentos” se transformar na “Ditadura
dos Bons Sentimentos” – levando ao último nível o seu “terrorismo intelectual”:
“E nesse momento seus protagonistas irão sem dúvida sacrificar algum bode
expiatório para celebrar e confortar o Universalismo, a Verdade, a Moral, a
Ciência ou outro Deus único do mesmo calibre. [...].”.(p. 41). Totalitarismos,
inquisições, ditaduras – tudo é resquício de uma apropriação absolutizante da
vida por um ideal determinado.
Os
escritos acadêmicos tem a mania, que chamamos "ciência", de
multiplicar pensamentos referendados pelo autismo do discurso oficial -
reverberado mil vezes. Um entolho de frases certas - que apontam os erros de um
mundo obscenamente incurável - e a cura teórica dos burgueses (em maioria) que
teimam com a vida e preferem as cortinas bem limpas das academias e mesas de
debates.
O
que nos socorre é a salvação dos “outsiders”,
dos que pensaram contra a sociedade. O vírus que não morre é a nossa cura. Contra
o delírio de um mundo ideal que seja construído sem relacionamento íntimo e
orgânico com a vida real – escapando das promessas e dogmas metafísicos do
saudosismo melancólico que parece percorrer os filósofos desde a Antiguidade
clássica: “Já Platão afirmava que os “bons velhos tempos”, os tempos
dourados, haviam ficado perdidos para trás, numa outra fórmula para observar
e lamentar que os tempos “do momento” não tinham forma boa ou, a rigor, forma
alguma. (COELHO, p. 14). Neste
pessimismo de esperar outro momento, que não o agora, outro mundo, que não o
possível e real, constrói uma idealização extrema que recria-nos para
orbitarmos em torno desta incessante vontade de espelhar um tipo de beleza est-ética
(LIPOVETSKY, 2015) - que nos roubou de nós. Um certo pavor de escrever, falar
ou pensar algo que escape do filete coerente e digno que nos enfeite de
elogios, nos tem tornado menos “vírides”, mais domesticados e menos reais.
Amar
a vida. O presente – o instante. Pensar a partir do que está vivo. Esta lucidez
só é possível se não amarrada num “cordão de pérolas de vidro”(p.76). Se é da
provocação que surge a pérola real – os expurgados, os hereges, possuem a única
salvação possível.
Afinal,
o reino dos céus é a terra, e nada mais que isso.
O texto acima foi inspirado na obra:
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