Os labirintos do habitus e a Restauração da Catedral The Chartes .
O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29)
Os nossos sentidos criam o mundo, mas não tudo. O mundo simbólico humano se exterioriza pelas palavras, ritos, signos e outros que produzimos semanticamente como elementos constitutivos de nossa existência. Tudo que produzimos é cultura? Tudo que fazemos? É da essência da cultura o habitus? Para Pierre Bourdieu não - a cultura é tudo aquilo que resta quando se extirpa dela o habitus (COELHO, 2009, p. 32). É importante notar que a reprodução do habitus pode ser feita até pelos animais irracionais - sim! A transmissão cultural, segundo Richard Dawkins, não é característica apenas da espécie humana: "O melhor exemplo que conheço entre os animais foi recentemente descrito por P. F. Jenkins no canto de uma ave ("saddleback") que vive em ilhas próximas da Nova Zelândia. Na ilha na qual ele trabalhou havia um repertório total de cerca de nove cantos diferentes."(DAWKINS, 2007, p. 122). Entretanto, a cultura humana é mais que habitus, ou, parafraseando Pierre Bourdieu, é tudo menos o habitus. Neste sentido, o grande impasse aqui exposto é: o que há de ser restaurado faz parte da arte ou da cultura? Caso seja objeto cultural estaremos diante de uma restauração de difícil execução: "O programa para a obra de cultura, nessa perspectiva, arma-se sobre uma racionalidade convencional (convenciona-se que os reis magos eram de tal modo e convenciona-se que de um determinado modo, deste modo específico, são representados; e a convenção não deve mudar nunca, sob pena de eliminar-se o sentido do evento).". (COELHO, 2009, p. 132). Portanto, mudar a estética de uma Catedral é, necessariamente, se inserir dentro deste espaço místico que a constituiu. O que fazer quando a ciência achou a "cor verdadeira" da Catedral? O jornalista Joan Gould, em 1988, relatou sua experiência ao visitar a Catedral The Chartes e, quando lá, topou com um passado anterior à própria história do cristianismo: "Por acidente, eu tinha tropeçado em uma antiga tradição mística que afirma que Chartres - não a catedral, mas o ponto geográfico, especificamente esta colina com suas grutas subterrâneas - foi um terreno sagrado muito antes do primeiro cristão chegar aqui."(GOULD, online, 1988. Tradução livre da autora). Devemos então regressar ao sentido original de Chartes - antes de ter a Catedral The Chartes - e descortinarmos toda a "verdade histórica original"? O habitus constitui a história, mas não a cultura. O habitus é um labirinto. Conservá-lo; entretanto, é, muitas vezes, evitar as "geladeiras objetivantes de estrelas mortas"(COELHO, 2008, p. 97). Em "A inelutável cisão do ver" DIDI-HUBERMAN enuncia as propriedades duais do olhar: que se constitui primeiro como tentativa de "ter", mas que, necessariamente, perde-se, como um ato de "ser": "Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda evidência (a evidência visível) não obstante como uma obra (uma obra visual) de perda."(1998, p. 34). Segundo o mesmo autor, já na Idade Média se pontuava a diferença entre imagem (imago) e vestígio (vestigium): "Eles tentavam assim explicar que o que é visível diante de nós, em torno de nós - a natureza, os corpos - só deveria ser visto como portando traços característicos de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança a Deus perdida no pecado"”(1998, p. 35). A experiência visual, mesmo religiosa, é rudimentar - não absolutizante. A Catedral e todo aparato simbólico que lá residem compõem um caleidoscópio labiríntico não eternizado. A Carta de Veneza aponta para a importância da manutenção do aparato monumental do testemunho histórico e o meio em que está situado: "Art.3. A conservação e o restauro dos monumentos visam salvaguardar tanto a obra de arte como o testemunho histórico."Art.7. O monumento é inseparável da história - do qual é testemunho - e também do meio em que está situado. Por conseguinte, a deslocação do todo ou de uma parte de um monumento não pode ser tolerada, a não ser no caso em que a salvaguarda do monumento exija, ou quando as razões de um grande interesse nacional ou internacional justifiquem. art.9 O restauro é uma operação que deve ter um caráter excepcional. Destina-se a conservar e a revelar os valores estéticos e históricos dos monumentos e baseia-se no respeito pelas substâncias antigas e pelos documentos autênticos (ou seja, pela antiguidade e pela autenticidade).[....]". (Grifo nosso). A restauração vem; portanto, apresentar algumas saídas: 1. Habitus é o labirinto da cultura: ou seja, precisa ser desfeito, mas com cuidado - até o momento que não a desfigure; 2. Como todo labirinto-humano: não há sempre uma única saída. Por este motivo, a decisão de continuar a restauração, ou a de parar com a mesma, sempre movimentará posições antagônicas; 3. Não há experiência visual que detenha toda a infinitude da obra observada, mesmo a religiosa; 4. A verdade é a vida: "É difícil dizer a verdade pois, embora exista apenas uma verdade, ela está viva e tem, portanto, uma face viva e mutável." (Franz Kafka). Por este motivo, a Restauração deve vir acompanhada de amplo diálogo para não se perder dentro dos labirintos do habitus, nem da ciência.
O que vemos só vale - só vive - em nossos olhos pelo que nos olha. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 29)
Os nossos sentidos criam o mundo, mas não tudo. O mundo simbólico humano se exterioriza pelas palavras, ritos, signos e outros que produzimos semanticamente como elementos constitutivos de nossa existência. Tudo que produzimos é cultura? Tudo que fazemos? É da essência da cultura o habitus? Para Pierre Bourdieu não - a cultura é tudo aquilo que resta quando se extirpa dela o habitus (COELHO, 2009, p. 32). É importante notar que a reprodução do habitus pode ser feita até pelos animais irracionais - sim! A transmissão cultural, segundo Richard Dawkins, não é característica apenas da espécie humana: "O melhor exemplo que conheço entre os animais foi recentemente descrito por P. F. Jenkins no canto de uma ave ("saddleback") que vive em ilhas próximas da Nova Zelândia. Na ilha na qual ele trabalhou havia um repertório total de cerca de nove cantos diferentes."(DAWKINS, 2007, p. 122). Entretanto, a cultura humana é mais que habitus, ou, parafraseando Pierre Bourdieu, é tudo menos o habitus. Neste sentido, o grande impasse aqui exposto é: o que há de ser restaurado faz parte da arte ou da cultura? Caso seja objeto cultural estaremos diante de uma restauração de difícil execução: "O programa para a obra de cultura, nessa perspectiva, arma-se sobre uma racionalidade convencional (convenciona-se que os reis magos eram de tal modo e convenciona-se que de um determinado modo, deste modo específico, são representados; e a convenção não deve mudar nunca, sob pena de eliminar-se o sentido do evento).". (COELHO, 2009, p. 132). Portanto, mudar a estética de uma Catedral é, necessariamente, se inserir dentro deste espaço místico que a constituiu. O que fazer quando a ciência achou a "cor verdadeira" da Catedral? O jornalista Joan Gould, em 1988, relatou sua experiência ao visitar a Catedral The Chartes e, quando lá, topou com um passado anterior à própria história do cristianismo: "Por acidente, eu tinha tropeçado em uma antiga tradição mística que afirma que Chartres - não a catedral, mas o ponto geográfico, especificamente esta colina com suas grutas subterrâneas - foi um terreno sagrado muito antes do primeiro cristão chegar aqui."(GOULD, online, 1988. Tradução livre da autora). Devemos então regressar ao sentido original de Chartes - antes de ter a Catedral The Chartes - e descortinarmos toda a "verdade histórica original"? O habitus constitui a história, mas não a cultura. O habitus é um labirinto. Conservá-lo; entretanto, é, muitas vezes, evitar as "geladeiras objetivantes de estrelas mortas"(COELHO, 2008, p. 97). Em "A inelutável cisão do ver" DIDI-HUBERMAN enuncia as propriedades duais do olhar: que se constitui primeiro como tentativa de "ter", mas que, necessariamente, perde-se, como um ato de "ser": "Abramos os olhos para experimentar o que não vemos, o que não mais veremos - ou melhor, para experimentar que o que não vemos com toda evidência (a evidência visível) não obstante como uma obra (uma obra visual) de perda."(1998, p. 34). Segundo o mesmo autor, já na Idade Média se pontuava a diferença entre imagem (imago) e vestígio (vestigium): "Eles tentavam assim explicar que o que é visível diante de nós, em torno de nós - a natureza, os corpos - só deveria ser visto como portando traços característicos de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança a Deus perdida no pecado"”(1998, p. 35). A experiência visual, mesmo religiosa, é rudimentar - não absolutizante. A Catedral e todo aparato simbólico que lá residem compõem um caleidoscópio labiríntico não eternizado. A Carta de Veneza aponta para a importância da manutenção do aparato monumental do testemunho histórico e o meio em que está situado: "Art.3. A conservação e o restauro dos monumentos visam salvaguardar tanto a obra de arte como o testemunho histórico."Art.7. O monumento é inseparável da história - do qual é testemunho - e também do meio em que está situado. Por conseguinte, a deslocação do todo ou de uma parte de um monumento não pode ser tolerada, a não ser no caso em que a salvaguarda do monumento exija, ou quando as razões de um grande interesse nacional ou internacional justifiquem. art.9 O restauro é uma operação que deve ter um caráter excepcional. Destina-se a conservar e a revelar os valores estéticos e históricos dos monumentos e baseia-se no respeito pelas substâncias antigas e pelos documentos autênticos (ou seja, pela antiguidade e pela autenticidade).[....]". (Grifo nosso). A restauração vem; portanto, apresentar algumas saídas: 1. Habitus é o labirinto da cultura: ou seja, precisa ser desfeito, mas com cuidado - até o momento que não a desfigure; 2. Como todo labirinto-humano: não há sempre uma única saída. Por este motivo, a decisão de continuar a restauração, ou a de parar com a mesma, sempre movimentará posições antagônicas; 3. Não há experiência visual que detenha toda a infinitude da obra observada, mesmo a religiosa; 4. A verdade é a vida: "É difícil dizer a verdade pois, embora exista apenas uma verdade, ela está viva e tem, portanto, uma face viva e mutável." (Franz Kafka). Por este motivo, a Restauração deve vir acompanhada de amplo diálogo para não se perder dentro dos labirintos do habitus, nem da ciência.
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