"O Queermuseu e a Interversão de Dioníso."

O dever da arte é ser Apolo. Assim
seria a exigência de uma arte que apenas refletisse o curso e ordem da razão
dominante. Mas o apelo dionisíaco, outro verso da beleza, inverte a ordem das
coisas e propõe sua subversão pelo desejo. Enquanto alguns veem no seu próprio
umbigo sensorial o filtro "moral-semiótico" do que "deve
ser" a arte - Dioniso confunde, embriaga e...Big Bang! Chega à
existência o "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte
Brasileira", reunindo mais de 270 trabalhos de 85 artistas renomados, com
a curadoria de Gaudêncio Fidelis. Uma explosão
que tem menos sobre o que há no museu e mais sobre o que experimentamos no
Brasil. O termo “Interversão”, utilizado no título deste parecer,
é inspirado numa intervenção artística ocorrida na década de oitenta no Rio de
Janeiro: o “Movimento de Arte Pornô”, comemorando os 60 anos da
Semana de Arte Moderna. Seu lema era: “Arte é penetração e gozo” (AGUILAR;
CÁMARA, 2017, p. 29). Este, suscita, necessariamente, debates intensos, e a
maior inquietação ocasionada pelos burburinhos em torno da exposição Queer
está relacionada ao mesmo passo - ela, também, vem lançar luzes sobre a
possibilidade de uma: “alteração da ordem natural ou habitual”(AGUILAR;
CÁMARA, 2017, p. 29). O conceito de beleza tem memória grega: Apolo e
Dionísio eram suas representações no Templo de Delfos. Enquanto aquela comunga
bem com as exigências de pôr ordem e controlar o caos da existência, a
dionisíaca brinca com as fronteiras - as nega, traz crises, põe Big Bang no
mundo: “Essa coabitação de duas divindades antitéticas não é casual, embora
só tenha sido tematizada na idade moderna, com Nietzsche. Em geral, ela exprime
a possibilidade, sempre presente e verificando-se periodicamente, da irrupção
do caos na beleza da harmonia.”.(ECO, 2014, p. 53, 54). Caos: isto resume
um pouco todo o frisson ocasionado pela exposição, conseguindo provocar
críticos de todos os lados: tanto de dentro, como de fora do círculo da arte. Vamos então começar pelas críticas
endógenas. Segundo estas o nome Queer não seria o mais
adequado à plataforma temática – haveria uma tentativa de purificação moral do
termo, o qual deveria ter sido denominado de “arte viada” ou "arte
maricas", como foi efetuado em Portugal: "O termo “queer”
presente no título da mostra refere-se exatamente a essa injúria e, por esse
motivo, os portugueses traduziram adequadamente o termo “teoria queer” como
“teoria maricas” (bem lembrado por meu amigo Ernani Chaves). No Brasil dos
doutos apaziguadores das polêmicas, permanece “teoria queer”, mas eu prefiro
“teoria viada” e seu sucedâneo “arte viada” que, como sabemos, não é
produzida só por viados e viadas. E não é de hoje que se produz “arte
viada”.(MEDEIROS, online, 2017). Já as críticas exógenas, tem
sido produzidas em grande medida pelo já conhecido MBL - Movimento
Brasil Livre. Este, diferente do "Movimento de Arte Pornô", não
aprecia a arte - e a tem como um perigo, desconstrutora da moralidade. Neste
sentido, este "movimento" determina, precariamente, qual arte seria
útil dentro do seu conceito de beleza, religião, sexualidade, etc. Ações
típicas de sentimentos “onfaloscópicos” (MAFFESOLI, 2009, p. 18). O MBL é
caracterizado, essencialmente, por suas posições reducionistas, típicas do
sério problema dos grupos que se utilizam de identidades absolutas e as querem
impor, inflamando o mundo, em "miniturizações" identitárias (SEN,
201, p. 185). A ideia de atribuir uma utilidade para arte, seja qual for a ideologia
que a anime, é estranha à sua própria essência. August Wilhelm Schlegel, em sua
obra “Doutrina da Arte”, labora uma teoria sobre história, crítica e teoria da
arte. Neste clássico ele assevera: “Uma casa serve para nela se morar. Mas para
que serve, nesse sentido, um quadro ou um poema? Para nada. Muitas pessoas
tiveram boas intenções com as artes, mas as compreenderam muito mal quando
procuraram recomendá-las pelo aspecto de sua utilidade. Isso significa
rebaixá-las ao extremo e inverter a questão. Na essência das belas-artes
reside o fato de não quererem ser úteis. O belo é, em certa medida, o
oposto do útil: ele é algo junto a que se abandonou o ser útil. Tudo que é
útil é subordinado àquilo para o que é útil.” (SCHLEGEL, 2014, p. 26). Num
diálogo entre Walter Benjamin e um amigo seu (que ele não cita o nome) sobre a
“finalidade da arte” e a máxima "L’art pour l’art" - seu amigo
assevera: “ [L'art pour L'art] Significa simplesmente: a arte
não é funcionária do Estado, não é empregada da Igreja, nem mesmo é a favor da
criança, etc. L’art por l’art significa: não se sabe que destino dar à
arte.”.(BENJAMIN, 2013, p. 32). Portanto, estamos diante de um
flagrante Estado de exceção para o direito fundamental à liberdade de
expressão (Art. 5o. IV, IX, 22 parágrafo 2o, CR/88), instaurando um tipo de "Ditadura
dos bons sentimentos" (MAFFESOLI, 2009, p. 123), pois, mesmo com as
melhores intenções: tudo isto não passará de uma imposição desenfreada de
sentido. Não poucas vezes experimentamos direitos se tornarem álibis nas
mãos de péssimos intérpretes. Há um fenômeno estudado como "Solipsismo"
(STRECK, 2017, p. 273) que alerta como alguém, viciado em si (em seu umbigo)
decide não conforme o direito em questão, mas conforme sua visão de mundo -
impondo-a de maneira, muitas vezes, irracional. Este fenômeno ocorre não apenas
quando um juiz concretiza uma decisão absurda, mas quando, como ocorreu no
Estado do Espírito Santo, em caráter de urgência, se propõe uma Lei censurando toda
forma de nú artístico - uma lei claramente solipsista. Neste sentido, cancelar a mostra foi; portanto, uma arbitrariedade. E, se querem declarar uma guerra contra a arte, só uma luta
animada pela liberdade, desejo e poesia - num mosaico experimental (COELHO, 2008, p. 120)
nos salvará, então: “ Tesudos de todo mundo, uni-vos! ”(FREIRE, 1990).
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