domingo, 26 de novembro de 2017

Queermuseu e a Interversão de Dionísio.


"O Queermuseu e a Interversão de Dioníso."

O dever da arte é ser Apolo. Assim seria a exigência de uma arte que apenas refletisse o curso e ordem da razão dominante. Mas o apelo dionisíaco, outro verso da beleza, inverte a ordem das coisas e propõe sua subversão pelo desejo. Enquanto alguns veem no seu próprio umbigo sensorial o filtro "moral-semiótico" do que "deve ser" a arte - Dioniso confunde, embriaga e...Big Bang! Chega à existência o "Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", reunindo mais de 270 trabalhos de 85 artistas renomados, com a curadoria de Gaudêncio Fidelis. Uma explosão que tem menos sobre o que há no museu e mais sobre o que experimentamos no Brasil. O termo “Interversão”, utilizado no título deste parecer, é inspirado numa intervenção artística ocorrida na década de oitenta no Rio de Janeiro: o “Movimento de Arte Pornô”, comemorando os 60 anos da Semana de Arte Moderna. Seu lema era: “Arte é penetração e gozo” (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p. 29). Este, suscita, necessariamente, debates intensos, e a maior inquietação ocasionada pelos burburinhos em torno da exposição Queer está relacionada ao mesmo passo - ela, também, vem lançar luzes sobre a possibilidade de uma: “alteração da ordem natural ou habitual”(AGUILAR; CÁMARA, 2017, p.  29). O conceito de beleza tem memória grega: Apolo e Dionísio eram suas representações no Templo de Delfos. Enquanto aquela comunga bem com as exigências de pôr ordem e controlar o caos da existência, a dionisíaca brinca com as fronteiras - as nega, traz crises, põe Big Bang no mundo: “Essa coabitação de duas divindades antitéticas não é casual, embora só tenha sido tematizada na idade moderna, com Nietzsche. Em geral, ela exprime a possibilidade, sempre presente e verificando-se periodicamente, da irrupção do caos na beleza da harmonia.”.(ECO, 2014, p. 53, 54). Caos: isto resume um pouco todo o frisson ocasionado pela exposição, conseguindo provocar críticos de todos os lados: tanto de dentro, como de fora do círculo da arte. Vamos então começar pelas críticas endógenas. Segundo estas o nome Queer não seria o mais adequado à plataforma temática – haveria uma tentativa de purificação moral do termo, o qual deveria ter sido denominado de “arte viada” ou "arte maricas", como foi efetuado em Portugal: "O termo “queer” presente no título da mostra refere-se exatamente a essa injúria e, por esse motivo, os portugueses traduziram adequadamente o termo “teoria queer” como “teoria maricas” (bem lembrado por meu amigo Ernani Chaves). No Brasil dos doutos apaziguadores das polêmicas, permanece “teoria queer”, mas eu prefiro “teoria viada” e seu sucedâneo “arte viada” que, como sabemos, não é produzida só por viados e viadas. E não é de hoje que se produz “arte viada”.(MEDEIROS, online, 2017). Já as críticas exógenas, tem sido produzidas em grande medida pelo já conhecido MBL - Movimento Brasil Livre. Este, diferente do "Movimento de Arte Pornô", não aprecia a arte - e a tem como um perigo, desconstrutora da moralidade. Neste sentido, este "movimento" determina, precariamente, qual arte seria útil dentro do seu conceito de beleza, religião, sexualidade, etc. Ações típicas de sentimentos “onfaloscópicos” (MAFFESOLI, 2009, p. 18). O MBL é caracterizado, essencialmente, por suas posições reducionistas, típicas do sério problema dos grupos que se utilizam de identidades absolutas e as querem impor, inflamando o mundo, em "miniturizações" identitárias (SEN, 201, p. 185). A ideia de atribuir uma utilidade para arte, seja qual for a ideologia que a anime, é estranha à sua própria essência. August Wilhelm Schlegel, em sua obra “Doutrina da Arte”, labora uma teoria sobre história, crítica e teoria da arte. Neste clássico ele assevera: “Uma casa serve para nela se morar. Mas para que serve, nesse sentido, um quadro ou um poema? Para nada. Muitas pessoas tiveram boas intenções com as artes, mas as compreenderam muito mal quando procuraram recomendá-las pelo aspecto de sua utilidade. Isso significa rebaixá-las ao extremo e inverter a questão. Na essência das belas-artes reside o fato de não quererem ser úteis. O belo é, em certa medida, o oposto do útil: ele é algo junto a que se abandonou o ser útil. Tudo que é útil é subordinado àquilo para o que é útil.” (SCHLEGEL, 2014, p. 26). Num diálogo entre Walter Benjamin e um amigo seu (que ele não cita o nome) sobre a “finalidade da arte” e a máxima "L’art pour l’art" - seu amigo assevera: “ [L'art pour L'art] Significa simplesmente: a arte não é funcionária do Estado, não é empregada da Igreja, nem mesmo é a favor da criança, etc. L’art por l’art significa: não se sabe que destino dar à arte.”.(BENJAMIN, 2013,  p. 32).  Portanto, estamos diante de um flagrante Estado de exceção para o direito fundamental à liberdade de expressão (Art. 5o. IV, IX, 22 parágrafo 2o, CR/88), instaurando um tipo de "Ditadura dos bons sentimentos" (MAFFESOLI, 2009, p. 123), pois, mesmo com as melhores intenções: tudo isto não passará de uma imposição desenfreada de sentido. Não poucas vezes experimentamos direitos se tornarem álibis nas mãos de péssimos intérpretes. Há um fenômeno estudado como "Solipsismo" (STRECK, 2017, p. 273) que alerta como alguém, viciado em si (em seu umbigo) decide não conforme o direito em questão, mas conforme sua visão de mundo - impondo-a de maneira, muitas vezes, irracional. Este fenômeno ocorre não apenas quando um juiz concretiza uma decisão absurda, mas quando, como ocorreu no Estado do Espírito Santo, em caráter de urgência, se propõe uma Lei censurando toda forma de nú artístico - uma lei claramente solipsista. Neste sentido, cancelar a mostra foi; portanto, uma arbitrariedade. E, se querem declarar uma guerra contra a arte, só uma luta animada pela liberdade, desejo e poesia - num mosaico experimental (COELHO, 2008, p. 120) nos salvará, então: Tesudos de todo mundo, uni-vos! ”(FREIRE, 1990).


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