terça-feira, 24 de outubro de 2017

Por que não ser(ei) um outro?

SEN, Amartya. Identidade e violência: a ilusão do destino. Tradução: José Antonio Arantes. 1. ed. São Paulo: iluminuras: Itaú Cultural, 2015. 208p.


Antes existia um eu em mim,
Mas tratei de removê-lo cirurgicamente.
(Peter Sellers apud SEN, 2015, p. 26)

Cada um de nós sem dúvida pertence a vários.
(SEN, 2015, p. 42)

Prisioneiros de identidades costumam definir indivíduos de forma determinista. Este território inflamável tende a construir solidariedade apenas com o grupo identitário e a promover violência nos que, ao invés de serem vistos como prolongamentos da existência, essencialmente diversa, são tomados como inimigos das pretensas “identidades únicas”.
A morte de Kader Mia, presenciada por Amartya Sen quando tinha apenas 11 anos, marcou sua visão de mundo. Foi o que lhe levou a construir uma tese diferenciada para análise do desenvolvimento e do mercado: “Desenvolvimento como liberdade”. Juntamente com Mahbub ul Haq, criou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Kader Mia não possuía liberdade – pois não tinha como escolher, tendo que atravessar uma área perigosa, para trazer sustento à família – onde foi morto. Agora, nesta obra: “Identidade e violência”, publicada originalmente nos EUA em 2006, a mesma cena se repete, já no encerramento de seu último capítulo – como um insight no meio do caos: combatendo o perigo do que Gandhi chamou “vivissecção”(p.174) – a separação da Identidade em categorias essencialistas e imóveis pode levar a uma distorção da realidade e da história.
A obra faz uma análise dos tempos de globalização e terrorismos. Combate o conceito de “Choque de Civilizações”, apontando-o como confinamento, e aponta que, sua escolha é defender que um indivíduo, principalmente no contexto contemporâneo, pode ser, a um só tempo, "muitos outros".
A redução pela religião, civilização ou tradição histórica é uma quimera perigosa. Como indiano, narra sua própria experiência numa aula com uma professora de economia que reduziu sua individualidade ao que ela tinha fixado como:  "comportamento indiano".(p. 47). Isto ainda acontece quando fazem da Índia uma nação Hindu, desconsiderando todo acervo cultural ateísta, agnóstico, muçulmano – lá existente. É, ainda, a teima que permeia a obra de Huntington de que o Ocidente é uma soma identitária, o “modelo” que deve ser copiado - em contraponto com as demais "civilizações" - homogeneizadas de forma determinista.
É este o movimento: apontar identidades inflamáveis apenas no outro, não no Ocidente. Perder de vista as singularidades – desconstruir caminhos que são resultados de escolhas – que estão muito além de padrões hígidos.   
O sentimento de pertencimento, segundo o autor, possui o paradoxo de não estimular solidariedade ao agressor. Para tanto, se faz urgente a construção de uma ética para o terreno social da identidade – renegando o destino e refazendo a capacidade de escolha e diversidade em vida comunitária.
Segundo esta perspectiva, o universalismo protagonista do Ocidente não passa de um provincianismo. Alimentando uma forte noção de "nacionalismo anticolonialista", carregado de ressentimentos, histerias narrativas cegas e superficiais, além de volatilidade no ideal de conjugação de esforços por uma percepção da liberdade da escolha frente ao discurso unilateralista do Destino: civilizacional ou religioso.  
A dialética impossível percebida não no choque de contrapostos para uma síntese geral, mas numa percepção mais profunda das singularidades de cada indivíduo que é, ao mesmo tempo, muitos. É a base desta narrativa.
O autor defende sua tese - já amplamente divulgada em seu clássico: "Desenvolvimento como liberdade", que o mercado não opera sozinho - não tem leis a priori, sendo, por este motivo, um instrumento que pode ser utilizado para desenvolver as liberdades num plano global. Entretanto, não fecha os olhos para a extrema possibilidade de, sem igualdade e justiça, fomentarem violência com base no ressentimento e na desigualdade.

Esta obra tem como vetor fugir desse "moinho satânico" que quer “minituarizar” (p. 185) humanidade, propondo uma ética democrática global de diálogos e escolhas – expurgando o mito dos destinos e superioridades étnicas.

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